Cavaleiros de Gutenberg - Associação Lusófona

CELEBRANDO UMA EFEMÉRIDE

Minhas Senhoras e meus Senhores

Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg
É um símbolo que pertence à “academia dos imortais” A Humanidade inteira reconhece o valor do seu nome e do seu legado.
Em fevereiro (dia 3) deste ano, ocorreu o 550.º aniversário da sua morte
Como ‘tipógrafo’, despretenciosamente, proponho-me prestar a minha homenagem, munido da ‘profissionalidade’ que me identifica com ele


Hoje e aqui, cabe-me o honroso privilégio de usar da palavra para a dedicar à sua memória… e tentarei satisfazer quem me ouve ou me lê, apesar das minhas limitações e da falta de tempo ou de espaço… Falar de Gutenberg é empolgante. Mas implica considerar a enorme dimensão da sua figura e a incontestável projeção do seu ‘profético’ contributo que impulsionou o desenvolvimento civilizacional da sociedade humana: a IMPRENSA. Mas também implica condensar o discurso para evitar eventual desconforto de quem ouve ou lê. Com alguma ousadia, de que me acuso, sugiro que juntos recorramos ao conhecimento histórico que dele temos. E juntos folheemos o imaginário livro de pergaminho impresso, iluminado, com encadernação em pele, tendo embutida na capa a sua imagem, decorada a ouro. Unamo-nos na tentativa académica de um repasse. Convirá deter-nos em alguns dados biográficos, porventura pouco claros ou esquecidos.
Sendo arriscado e ingrato, é forçoso fazer um resumo, detendo-me nos tópicos colhidos que são indispensáveis para ajudarem, talvez, alguém a recordar o prototipógrafo universal, a quem se deve o mérito de estarmos aqui…
Para já, fique-nos a certeza de uma vida pessoal exemplar, única, integralmente dedicada à realização de um empolgante sonho, que, não sendo utopia, a invenção, foi, é e será serviço. A inveja contaminadora terá gerado controvérsias, alguma dúvida e até malévola suspeição. Durante algum tempo, ignorando-se a clarividência da identificação dos documentos, nem sempre datados, alimentou-se a polémica e houve contestações a reivindicar o primado da imprensa com as caraterísticas que só Gutenberg concebeu.
Apareceram tendenciosas teses a favor de candidatos, lançando confusão: e, excluídos os chineses e os vidreiros de Murano, o sacristão holandês Lourenço Janszoon ‘Cóster’ e o médico italiano Panfilo Castaldi foram os candidatos mais credenciados.

Nasceu ele na cidade alemã de Mogúncia (hoje Mainz), entre 1394 e 1399, mais provavelmente em 1397, no dia 24 de junho, festa de S. João. Terá sido por isso que foi batizado com o nome do santo percursor de Cristo. Foram seus pais Friel (III) zur Laden zum Gutenberg (morto em 1419), e Else Wirich zun Steinen Krame (2.ª mulher de Friel, morta em 1433). Henne (João) foi o 3.º filho do casal.

A família (nobre decadente) dos Gensfleish, em 1419, após a morte de Friel III, pai de Friel IV, de Else II e de Henne Gutenberg, ficou a ser ‘chefiada’ pelo primogénito, politicamente aleado da fidalguia. Apesar de tudo o prestígio da família manteve-se respeitável graças aos vinhos que produzia na propriedade junto ao Reno, além do negócio de ourivesaria que identificava a atividade familiar desde Friel II.
Presume-se que desde pequeno revelasse pouca apetência para qualquer um dos três ‘projetos de vida’ tradicionalmente destinados aos filhos dos nobres: ser militar; ser eclesiástico; ou ser cortesão, civil acomodado, mais ou menos ocioso. Mas João Gutenberg alheou-se desses padrões e eliminou voluntariamente o tabu.
João era o mais novo e talentoso dos Gensfleish; evidenciava-se pela sua invulgar habilidade. Jovem com tendência para as artes, idealista e criativo, sabia de fundição de ligas metálicas (também de metais preciosos).

Possuindo dotes de extraordinária imaginação, desenhava e criava peças originais de joalharia. Por isso era considerado pela nobreza dentro e fora de Mogúncia; mas, por outro lado, e paradoxalmente, gozava da estima das corporações populares, devido ao seu caráter ‘sociável’ pois ‘encerrava em si o orgulho do nobre e o entusiasmo do artesão’.
Graças a ele, e não obstante algumas retaliações da plebe, o palácio e os bens da família terão sido poupados durante os conflitos sócio-políticos. Contudo, por prudente cautela, em 1423 os dois irmãos foram para Estrasburgo, deixando em Mogúncia a mãe com a irmã Else (II), cuja filha, também Else (IV) por ser sua mãe a Else (III), viria a ser herdeira do tio Henne Gutenberg. (Foi a única sobrinha que lhe sobreviveu, tendo morrido em 1475, e o marido - Henne Humbrecht - faleceu em 1477, mas não deixaram descendentes).

Poder-se-ia perguntar: - porquê emigrar para Estrasburgo, a cidade ‘argentina’ Argentoratum dos Romanos?

- Deixemos desde 1423 o seu irmão (Friel IV) em convívio com a fidalguia e a tratar dos seus negócios (morreu em 1447), e ocupemos a nossa atenção a seguir João, (Henne) Gutenberg que, a caminho de Estrasburgo, de passagem por Harlem, se encontrou com o sacristão da Catedral (Lourenço Janszoon Cóster), surpreendentemente hábil na gravação xilográfica de imagens para estampar e de letras soltas iniciais para agilizar o trabalho dos copistas… nas oficinas escritórias…

De relance fixemo-nos nas implicações intelectuais, na fecunda criatividade e nas raras competências ganhas com estudo e execuções manuais deste homem genial. Poderemos, assim, entender melhor o significado dos requisitos ligados à perceção de quanto logicamente era de dominar e que, desde logo, Gutenberg intuiu. Por exemplo, analisando minuciosamente os manuscritos para os imitar – hoje dizemos clonar – dado se ter deixado absorver pela intenção de fazer igual, fazer melhor, fazer mais, mais depressa e mais barato.
Chegado a Estrasburgo, cidade soberana, na dependência direta do Imperador, mesmo sem conhecer lá ninguém, quis fazer parte da associação dos ‘moedeiros’ ao mesmo tempo que se dedicava à procura de soluções para os problemas técnicos, experimentando as aplicações práticas do seu secreto plano de produção da escrita sem pena nem tinteiro.
Estava mais entusiasmado agora, depois do encontro com o Cóster. Mas foi útil travar conhecimento em Estrasburgo com artesãos conceituados, visitar oficinas onde se trabalhavam ligas metálicas, entrar em fábricas e, especialmente, na ‘casa da moeda’, onde se gravavam punções para a cunhagem e matrizes para reprodução numismática. O seu nome consta inscrito na Corporação dos Ourives desde 1434.

Das suas primeiras experiências ‘tipográficas’ utilizando carateres móveis, pouco se sabe, dado que trabalhava sozinho e às escondidas primeiro na cidade e depois no Mosteiro de Santo Arbogasto, nos arredores de Estrasburgo. Do que não há dúvida é que os primeiros eram de madeira.
Tudo levaria a crer que a decisão de talhar em madeira paralelepípedos regulares de seis faces com o olho da letra esculpida numa face (cabeça) e tendo todos a mesma altura (da cabeça ao pé), a tenha recolhido do tal Lourenço em Harlen, mas terá sido determinante a visita e a conversa com os moedeiros e a observação de punções para cunhar as moedas, donde apreendeu a técnica que conduziu ao processo tipográfico com carateres metálicos…

Isolado, em terra estranha, levou a que Gutenberg livre e secretamente se dedicasse à tecnologia da ‘escrita artificial’: - Desenhando as letras, esculpindo punções em aço mole que depois se tempera, a fim de cravar matrizes para obter os caracteres móveis em quantidade, mediante o vazamento de metal (chumbo) líquido em molde expressamente concebido para o efeito.
Não faltavam pontos de interesse na cidade ’argentina’, (Estrasburgo), a começar pela fábrica de moeda. Com o domínio captado da técnica de cunhagem e da amoedação, Gutenberg consegue realizar, fase por fase, todo o circuito produtivo ´tipográfico (desde o desenho aos punções, às matrizes e aos moldes ou fôrmas para a fundição), reunindo os meios e instrumentos necessários para compor e imprimir as primeiras produções não manuscritas: pagelas Bulas das Indulgências e a Gramática Latina (de Donato), além de muitos outros impressos em papel.

É de lembrar, porém, que tudo começou mediante a técnica xilográfica (impressão tabular). De modo tentado, também terá recorrido à técnica da ‘chapa metálica puncionada’ (argumento polémico ainda em discussão, pelo que se torna o iniciador da estereotipia, segundo o investigador nosso conhecido Bruno Fabbiani) e prossegue com a produção dos carateres móveis (tipos soltos) fundidos em metal (chumbo) que passa a utilizar para compor e paginar textos, reutilizando os tipos depois de feita a impressão das páginas. E deixou de utilizar os de madeira, cujos vestígios ainda que raros se conservam em museus.

Falar pois de Gutenberg implica necessariamente aludir à sua obra.
E a obra tipográfica produzida por ele exigiria discurso mais abrangente com referências globais e exatas, incluindo o estilo e as técnicas de obtenção dos carateres móveis por ele criados e utilizados; e também por outros que com ele aprenderam e colaboraram. (Como nem o tempo nem o espaço permitem, limito-me, com pena, às generalidades e remeto para a bibliografia especializada).

Para o ‘gráfico’ de hoje, que seja ‘tipógrafo’ tudo quanto imprimiu Gutenberg tem de ser considerado à luz da sua época e do ambiente socio-político-cultural e religioso, mas como atividade original, absolutamente nova. As suas mais íntimas pretensões pressupunham o domínio de específicos conceitos ‘temáticos’ com aditamento de atitudes contemplativas sobre: a proporcionalidade dimensional (formato ou módulo) ou o cânone arquitetural das páginas manuscritas; o desenho e a beleza da letra gótica (alemã); a uniformidade das espessuras das hastes padronizadas (em comprimento, largura e altura); o indispensável alinhamento horizontal/vertical; o tamanho das letras antes escritas com a canícula das penas de aves sobre folhas de pergaminho ou de papel; os espaços interliterais, entre as palavras e interlineares, que agilizam a higiene de leitura do texto; a ‘bitola’ da mancha; os brancos perimetrais ou das ‘margens’ de cada página par-ímpar), como ‘paradigma’ equivalente às que contemplava, fossem ou não ilustradas com miniaturas de artistas iluminadores, sobretudo de letras capitulares… a valorizarem o trabalho dos copistas.

Obviamente terá sido de fundamental importância, também, o domínio dos segredos técnicos relativos às matérias primas a utilizar, como era o caso dos suportes (especialmente o papel já abundante) e dos meios tintórios para justificar a designação de ‘arte negra’. Tal domínio exigiu aturada observação e muitas experimentações, conducentes ao fabrico, em quantidade e com a qualidade que hoje se pode considerar admirável.

A partir de 1434, encontrou na cidade argentina colaboradores à altura, como o carpinteiro, mecânico e torneiro Conrado Saspach que seguindo a sua orientação lhe construiu o primeiro prelo; um ourives gravador chamado Dünne, para esculpir as letras em punções de aço mole (a temperar) para originar matrizes com que se reproduziam tipos.
Não tendo recursos económicos, a tarefa foi árdua, mas conseguiu obter financiamento através da criação de uma ‘sociedade’ para fazer face às consideráveis despesas do seu empreendimento – André Dritzehen, João Riff e André Heilmann entraram com capital na parceria.
Em contrapartida, Gutenberg obrigava-se a revelar aos sócios alguns segredos importantes que deviam redundar em lucros chorudos para os investidores. Registou-se esta primeira empresa com o nome de ‘Sociedade para o aperfeiçoamento do método de fabricar espelhos’…
André Dritzehen não era só um especulador, pois que se mostrava empenhado na ‘descoberta’ do método da ‘escrita artificial’ sem atender ao parecer contrário do irmão Nicolau para quem isso era assunto de ourives e iluminadores miniaturistas, que previam ganhar: uns, com multiplicação dos carateres móveis em liga metálica; outros, com o aumento de solicitações da sua arte para ilustrar as páginas…

É sabido que a breve trecho, a oficina instalada com todo o secretismo no Mosteiro de Santo Arbogasto, pôde sair à luz do dia e instalar-se na cidade. Foi mesmo em casa do agora sócio André. Este, porém, morreu pouco depois e Nicolau, o único irmão e herdeiro, exigiu a devolução da soma emprestada, o que para Gutenberg não era possível.
O caso foi para tribunal; e dada a descapitalização da empresa e que os lucros previstos não se tinham concretizado, os juízes sentenciaram que Gutenberg devia restituir parte do dinheiro emprestado, tivesse ou não.
No entanto, o que resulta mais importante deste processo judiciário é que no arrolamento dos bens, para avaliação das existências (e todo o espólio), aparecem, pela primeira vez, as palavras prelos, fôrmas, moldes, instrumentos e ferramentas, componentes fundamentais da atividade tipográfica, o que permite estabelecer com precisão a época em que o conjunto desses equipamentos específicos começaram a ser usados. E, com a época, o lugar. (A nenhum dos pretendentes a ‘inventores da imprensa’ assistem tais provas a corroborar a atribuição da ‘paternidade’ antes de Gutenberg).
Contudo, escaparam alguns pormenores na escrituração do elenco quer porque os depoimentos das testemunhas do Nicolau, desconheciam os novos termos, quer por deliberada vontade das testemunhas do reu, que sabiam e não quiseram revelar os segredos da invenção.

Gutenberg terá deixado Estrasburgo em 1443, ou no máximo em 1444, pois neste ano o nome dele ainda figura no registo dos contribuintes. Dá-se por certo que estava em Mogúncia em 1448, mas não se sabe onde transcorreu os 4 anos de intercalares. Estando nessa altura a residir no palácio de Gutenberg a sua sobrinha, ele alugou casa para habitar e instalou no sempre seu palácio os equipamentos e acessórios que conseguira salvar e transportar de Estrasburgo, bem como tudo o que, entretanto, ia comprando e produzindo.

Com certeza iniciou a atividade tipográfica em Mogúncia antes de 1448; é justificada a demora por causa da dificuldade em encontrar as subvenções financeiras que assegurassem um recomeço sustentável e promissor. Sem se desviar dos objetivos, volta a estabelecer-se constituindo nova Sociedade, com a adesão do ourives João Fust (nascido em Mogúncia em 1410 e morto em Paris em 1466) que financiou o empreendimento do conterrâneo, de cujo pai fora amigo. Em 1449 já a tipografia de Gutenberg tinha atingido grande nível de perfeição, o que aguçava a ganância e dava tranquilidade ao ambicioso sócio, à espera da rentabilidade do seu dinheiro.

Porém, no mesmo ano em que se concluiu a impressão do mais famoso livro, a Bíblia das 42 linhas, aconteceu a rutura da sociedade. Interessava a Fust, apoiado pelo seu colaborador, excelente desenhador de letra e criador joalheiro, Pedro Schoeffer, eliminar o tipógrafo ‘sócio trabalhador’. Convinha não ter de partilhar com ele os proveitos que derivariam da venda daquela obra monumental e de outros trabalhos já produzidos e em vias de conclusão. Por isso forçou judicialmente a rescisão do contrato, exigindo a restituição do capital que emprestara e os respetivos juros.
Provando-se a incapacidade de Gutenberg para garantir o reembolso de tão elevada soma, o Tribunal sentenciou que o Autor fosse ressarcido mediante a transferência da propriedade das instalações e de todos os equipamentos, obras em curso, matérias primas, papel… os carateres produzidos e até – este que foi o motivo do usurário - todos os exemplares da Bíblia que o iluminador Kremer tinha ‘miniado’. Ou seja: tudo passou para o nome do queixoso. Assim acabou perdendo tudo o nosso ‘bom monte’ - Gutenberg.

Apesar desta sofrida derrota, com a amargura das expropriações que o deixaram sem nada, Gutenberg provou que é a vontade do homem que comanda a vida e mais uma vez resiste à dura provação. Não desiste dos seus objetivos. Esforça-se e retoma a atividade, reconstituindo a tipografia com apoio financeiro do poderoso Dr. Corrado Humery, depois ‘burgomestre’ de Mogúncia, que apreciava sincera e desinteressadamente o talentoso Gutenberg e o mérito do seu trabalho.
Não obstante as vicissitudes e os acontecimentos politicamente funestos que afetaram a população, especialmente em 1461 e 62, a nova oficina tipográfica que aos poucos se equipou, foi produtiva e rentável até 1465. No princípio da década de 60 cessou o litígio com a deposição do arcebispo Diether d’Isenburg e a tomada da cidade pelo eleitor Arcebispo Adolfo de Nassau que confiscou o palácio dos Gensfleich. Entretanto, com a tristeza e a frustração a saúde de Gutenberg começou a definhar e ele foi reduzindo a intensidade do trabalho direto.
Num ato de reconhecimento e admiração pelo homem e pela obra de Gutenberg o Arcebispo não só lhe reservou no Palácio um apartamento para habitar, como o nomeou Fidalgo de Honra da sua corte, atribuindo-lhe uma bem merecida e digna pensão.
Gutenberg morreu e foi sepultado na Igreja dos Franciscanos na sua terra natal. Essa Igreja foi demolida em 1742 foi mandada afixar uma lápide por Adão Gelthuss com a seguinte inscrição:

D.O.S. § A JOAO GENSFLEISCH § INVENTOR DA TIPOGRAFIA § BENEMÉRITO ENTRE OS HOMENS § DE TODAS AS PÁTRIAS E DE TODAS AS LÍNGUAS § EM PERPÉTUA MEMÓRIA DO SEU NOME § ADÃO GELTHUS, COLOCOU.

Ao reiterar neste evento o significado da presente homenagem, comemorando 550 anos da morte de Gutenberg, mesmo sem inscrições lapidares, apetecerá testemunhar a gratidão que este genial profeta da humanidade merece, dos gráficos e de todos quantos gravitam em torno da imprensa, com a certeza de que o seu nome jamais se apagará no mundo enquanto se souber ler.

A. Guilhermino Pires
Porto, 22 de junho de 2018 – ano da comemoração dos 250 anos da Imprensa Nacional


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